sábado, 16 de abril de 2011

EXÉRCITO AUXILIAR A ESPANHA 1793 A 1795 (Rossilhão e Catalunha))

MEMÓRIA
DE
 ANTÓNIO DE LEMOS PEREIRA DE LACERDA
CAPITÃO AGREGADO
 DO
REGIMENTO DE INFANTARIA DE PENICHE

EXCERTOS DA CAMPANHA DE 1793(1)

"(...) O General D. Francisco de Noronha, havendo-me feito a honra de nomear-me interinamente para seu Ajudante de Ordens (cujo encargo aceitei com a condição de que em todos os rebates me deixaria acompanhar as minhas Bandeiras) me deu logo comissão de visitar mais particularmente, todos os postos e baterias da dependência da Vila de Ceret (...) esta diligência continha alguma delicadeza, pois que me era preciso extrair artificialmente aos comandantes das baterias o sigilo das suas misérias, o que contudo consegui com modo e manha, como o General me determinara (...)

(...) Principiei por examinar em particular o local de todos os postos; a sua fortaleza e fraqueza natural; os ataques e defesas que possuíam; os caminhos para a retirada; para combinar no fim em geral as vantagens de uns postos a respeito de outros (...) notei depois o número de calibre das diferentes bocas-de-fogo; e carência de munições, sendo estas tão escassas, que encontrei numa bateria principal apenas oito lanternetas de metralha (...)


Colecção particular

(...) O General Mendinueta dividiu as tropas do seu comando em três diferentes Brigadas, uma guarnecia os postos avançados; outra ficava de noite de retém na ponte de Ceret; outra descansava das fadigas de tanto trabalho e de duas noites perdidas. Entretanto a epidemia grassava no Exército em resultado do contínuo cansaço, da má qualidade dos víveres, da falta de policia e da imundície do próprio soldado. Assim mais se enfraqueciam os meios de resistência e mais desesperavam as coisas. Nesse tempo os espanhóis conservavam nos hospitais perto de doze mil homens; nestas fúnebres habitações entravam todos os dias centenas de doentes e todos os dias morriam centenas de soldados. Estas gentes respeitáveis, que honradamente consagraram as suas vidas à pública defesa, e à segurança do Trono e da Pátria, chegavam mesmos a acabar sem alimento e medicinas nos depósitos de enfermos, ou mais depressa em esqueletos; onde muitas vezes esperam cinco a seis dias que vagasse uma palhaça, num dos hospitais, para serem admitidos. Outros eram transportados a pé, ou em carros numa distância de oito a dez léguas para os hospitais do interior,e, expiravam pelas estradas, vitimas infelizes de um diligente governo. Outros, enfim, iam ser um espectáculo de horror pela falta de assistência, pela carência de remédios, pela ignorância dos físicos, pouca caridade dos enfermos, e ladroeira de muitos, que enriqueciam à custa de um objecto tão precioso, como a conservação do soldado (...)

(...) O hospital (português) de Altes era no seu interior o modelo mais próprio para a construção, e regímen dos melhores hospitais. Nada faltava para o bom medicamento, e trato dos nossos portugueses; e a vigilância mais humana presidia a todo o momento ao pobre enfermo. Este hospital, contudo, não podia conter mais de seiscentos homens, e o número dos doentes portugueses montava a mil e quarenta seis homens, ficando o excesso repartido pelo hospital de Ceret (...) a completa falta de víveres fazia-se temer, pois os do País estavam consumidos e o mau estado dos caminhos, com a aspereza do tempo, impedia as conduções da Catalunha. Chegámos a não ter bois para comer, não havia uma só galinha e apenas apareciam carneiros mirrados para os doentes. O General Noronha, diferentes vezes me fez representar estas faltas a Mendinueta, que ultimamente me respondeu com um - não há! (...)


Documento original Colecção particular
 (...) O exército francês encontrava-se igualmente enfraquecido pela deserção e pela epidemia, que só em Perpinhã levava à sepultura cerca de duzentos homens por dia; esta mortandade era produzida por vómitos de cóleras negras, que apenas permitiam algumas horas de vida; moléstia que talvez tivesse a principal origem no uso da água ardente com pólvora, que se fazia beber às tropas para as prepararem para o combate (...)

(...) O Barão de Kessel (a 4 de Dezembro) conseguiu mostrar-nos ao inimigo (da parte portuguesa eram os Regimentos: 1.º do Porto, Peniche e duas Companhias de Granadeiros de Freire) com forças superiores e colocá-los em inquietação, contudo ordenou a retirada, reduzindo-nos a acção deste dia a ouvirmos como assobiavam as grossas balas; desprezando a vantagem que se lhe oferecia (...) no dia seguinte intentamos a mesma manobra (do dia 4); porém a aspereza do tempo, com as chuvas que caíram, que já nos haviam trespassado numa noite fria, não permitiu que chegássemos a tempo de nos mostrar, como queríamos, sobre a madrugada do inimigo (...) o dia 7 foi então aprazado para o ataque verdadeiro, que devia ter lugar sobre a frente do nosso flanco direito. Os Regimentos 1.º do Porto, Peniche e três Batalhões espanhóis, foram ao falso ataque da esquerda. Esta tropa, na posição que tomou, a tiro em medida no flanco direito dos franceses, os conteve por ali em respeito, e sofreu constantemente a pé firme, e a peito descoberto, um vivo fogo de artilharia, que é certo, por mal dirigido, nenhum prejuízo nos causou, posto que continuasse sem interrupção desde que aclarou a alva até às dez horas; que foi quando nos retiramos, por se achar concluída a acção (...)


Colecção particular

(...) À direita atacaram, em companhia das tropas espanholas, os três Regimentos portugueses de Olivença, 2.º do Porto e Freire, que se lhes havia incorporado. A diligência e intrepidez presídio à marcha, e o valor que animava as tropas conseguiram a mais completa vitória. Com esta, depois de desbaratados os franceses, caíram em nosso poder o campo e as baterias inimigas; as Vilas de São Geniz, Longa e La Rocha; 22 canhões, 1 morteiro e 4 obuses; 1500 barracas com todos os despojos que continham; 3000 espingardas; 240 bois vivos e 40 mortos; muito vinho e aguardente, que concorreram para mais alegremente se cantar o triunfo; os provimentos em fim subsidiários para a manutenção e sustento de 12446 homens, de que se compunha o Corpo do Exército Francês por aquele lado, segundo os mapas que se encontraram na tenda do seu General (...)

Colecção particular

(...) Dos portugueses houve um soldado morto e dos espanhóis cinco, além de diversos feridos. Dos franceses morreram 200 no campo de batalha e se afirmou que se afogaram cerca de 400 no rio Tech, 550 prisioneiros e 4000 extraviados pelas íngremes montanhas de São Cristóvão, por onde, os que não desertavam para Espanha, se recolheram a Coliouvre (...) esta acção deve encher de muitas glórias as nossas tropas, que  principiaram o ataque em concorrência com duas Companhias de Guardas Valonas; e que deram motivo a que os franceses dissessem, que a chegada dos demónios dos portugueses os impediam de invernarem na Catalunha. Talvez fosse esta a principal circunstância que concorreu para se fomentar uma certa emulação e rancor ente os Aliados, e para que os espanhóis não apreciassem, quanto era justo o desinteresse dos nosso serviço, em benefício da causa alheia e de Monarca estranho (...)"


Decreto original de 20 de Janeiro de 1794
Pensão para viúvas e filhas solteiras de militares falecidos
em campanha
Colecção particular

(1): Faz parte da colecção do autor, deste blogue, uma cópia dactilografada do manuscrito, esta encontra-se em folhas bastante antigas e pelo tipo da máquina de escrever, supõem-se que este trabalho tenha sido executado sensivelmente entre 1930 e 1940.

Coorden. do texto e ilustrações: marr

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